Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]


Devaneio CyberPunk

por Fulano de Tal, em 25.07.16

Manta Rota. 28 de Maio de 2094.

Tenho que ser breve, pelo que vou resumir a história ao essencial. Em 2004, um laboratório da Repsol, conhecido apenas por Anton...io Brufau e um conjunto muito pequeno de executivos da companhia, dedicou-se secretamente à liquefação de gases como Nitrogéneo, Hélio ou Oxigénio, arrefecidos a temperaturas apenas mensuráveis pela escala de Rankine, e que se supunha serem alternativas viáveis à escassez de combustíveis fósseis prevista para 2024.

A partir desse ano e nos seguintes, a Repsol ganhou a concessão de todas as áreas de serviço da Via do Infante, em Portugal, pagando preços verdadeiramente absurdos em face de qualquer potencial retorno. O plano consistia em fazer destes postos de abastecimento a base experimental para este novo tipo de combustível, assim estivesse ele disponível.

O Projecto Helygen, ou Élirren, como era pronunciado nas cúpulas castelhanas da Repsol, reunidas no número 278 no Paseo de la Castellana, em Madrid, produziu um memorando altamente secreto e que circulou apenas no 18º piso: as conclusões apontavam para a destilação de ar atmosférico como a alternativa mais vantajosa quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista energético. Este processo liquefaria o oxigénio. "Combustible desde el aire que respiramos! De puta madre!", regozijou-se Antonio Brufau.
O líquido seria posteriormente armazenado em Mega-Dewars (ou Megadévars, no castelhano), assim chamadas por serem versões gigantescas dos frascos de Dewar usados na altura para abastecimento de oxigénio líquido a hospitais.

Em 2012, finais de Julho, algo correu terrivelmente mal, justamente após o processo de destilação do ar atmosférico no posto de abastecimento de Olhão, o último antes da fronteira com Espanha. Seis Mega-Dewars foram violentamente derrubados por um automobilista embriagado de nacionalidade inglesa, que adormeceu ao volante do seu Suzuki Maruti, de aluguer, e que provocou longas fissuras nos compartimentos, libertando o líquido do seu interior.

Em 28 minutos o líquido escorreu pela encosta até às praias de Manta Rota e Lota, eliminando todas as formas de vida, incluindo a de 2.830 banhistas que ali se encontravam a veranear. Ou pelo menos assim se supôs nesse momento.

A última recordação que tenho é a de estar sentado à beira-mar observando o mar cálido de finais de Junho. Lembro-me de ter olhado para trás, surpreendido pela selecção musical do DJ da barraca dos gelados: Autobhan, dos Kraftwerk. Depois, um imenso frio e o vazio.

Na realidade as formas de vida foram criogenizadas pelos gases líquidos de baíxissimas temperaturas, não existindo naquela data tecnologia capaz de os devolver à vida.

Em Fevereiro de 2090 rebenta aquela que ficou conhecida como a "Guerra dos 2 dias", por ter sido esse o tempo necessário à massiva destruição que teve lugar. Áreas gigantescas do Globo Terrestre ficam inabitáveis, são abolidas todas as fronteiras, e perdem-se todas as fontes de conhecimento, inclusive sobre geografia. Milhões morreram. Hordas de assaltantes, malfeitores e assassinos impiedosos percorrem a terra, sem outros valores que não sejam os impostos por força, perante a ausência de qualquer normativa legal ou de uma força da ordem capaz de a impor.

Em Janeiro de 2094, um obscuro ginecologista de Altura, exibe perante a comunidade científica, composta por ele próprio, duas técnicas de higiene oral, e um pequeno eremita de longas barbas brancas a quem chamavam de Bernardo, provas contundentes de que havia descoberto tecnologia que deitava por terra o conceito de "Morte Teórica de Informação", e sugere ser capaz de não apenas soprar vida em corpos criogenizados sem lhes afectar desastrosamente as células, como preservar, e restaurar, toda a informação e estruturas cognitivas destes sujeitos. Artigos foram publicados ao longo desse ano, com evidências do achado nos poucos periódicos que eram distribuídos pelas populações, como o "Voz de Altura" e o "Sotavento ou Barlavento". A nanotecnologia molecular usada experimentalmente pelo especialista em pequenas reparações cirúrgicas de zonas erógenas, revelava-se a descoberta mais significativa neste período distópico.

Alguém se lembrou então dos 2.830 banhistas criopreservados acidentalmente em 2012, e que ainda se encontravam na região, acomodados em velhas arcas de gelados, abundantes naquela região mas completamente inúteis no pós-holocausto, uma vez que ninguém se dedicava mais ao fabrico de alimentos e muito menos de guloseimas espúrias. A expressão "Corneto", soube-o agora, aplicava-se simplesmente a uma peça em liga metálica que era usada na ignição dos potentes veículos usados pelos "First Responders", grupos de vigilantes que batiam diariamente as poucas zonas habitadas no sentido de aniquilar pequenos robots capazes de suster durante 2 minutos uma bandeja com seis copos daquilo que me parece ser um refrigerante de cor azulada, e cuja integridade havia sido comprometida pelos eventos de há precisamente 4 anos. Não existia já ninguém que associasse o termo a um simples rajá.

Eis-me aqui.

Acordei hoje, às 12:23h. Senti primeiro aquilo que me pareceu uma mão gelada a esbofetear-me uma, duas vezes. Um líquido gelatinoso escorria-me da face quando abri os olhos. Vultos indistintos pareciam pairar à minha frente, e uma luz irritante penetrava-me a retina.

Foi-me explicado que partes inteiras do meu cérebro foram melhoradas por uma técnica de fusão cibernética e molecular. Por alguma razão que desconheço sou incapaz de me emocionar, pelo que saio da estrutura sinusóidal em que estava instalado este estranho hospital e dou comigo a contemplar um cenário de absoluta destruição. A areia da praia era negra, coberta por uma fuligem que percebo ser produto das enormes nuvems negras Observo enquanto grupos de homens de aparência rude celebram aquilo que parece ser um estranho sacríficio efectuado em cima de um veículo, do qual sobressai um enorme motor V8. Os minúsculos circuitos que agora são a estrutura do meu sistema límbico, nomeadamente os cuidadosamente implantados no meu córtex frontal, responsável pela função cognitiva, respondem ao meu desejo de saber de quem se tratam com a informação: "Interceptores". Dizem-me ainda que se trata de uma casta de individuos, descritos como de grande ambiguidade moral, e incapazes se reproduzirem devido à forte exposição a átomos de hélio empacotados em estruturas cúbicas centradas.
A função destes interceptores nesta... "sociedade", é a criarem uma barreira entre a rebentação tóxica e as pequenas comunidades de humanos e ciborgues que habitam a orla da antiga praia. Paramentam-se com vestes de cabedal negro, e executam estranhas danças guerreiras nos longos momentos de ócio de que dispõem, uma vez que ninguém já tenta banhar-se, sendo essa uma prática que tinha caído em desuso há vários meses.

Sou acordado do meu devaneio cyberpunk, por um balde de água fria despejada em cima do meu peito pelo Fulanito de Tal.

Autoria e outros dados (tags, etc)



Mais sobre mim

foto do autor